Notadamente a partir das últimas décadas do XX os sistemas humanos foram vistos e analisados sob a ótica que envolve poder e controle, nas mais variadas questões sociais e familiares. Como indivíduos somos sujeitos ou objetos dessas ações, dependendo de onde, quando, ou com quem nos relacionamos em determinado momento. Poder e controle supõem hierarquia e estão de alguma forma inseridos em todos os tipos de relações.
Nas relações familiares a hierarquia geracional, ou seja, a tradução de papéis de cada elemento através da ordem de chegada à família, orienta e define papéis de pais e filhos. Isso é bastante confortador em sistemas saudáveis, em que pais assumem papéis adultos de orientação e cuidados físicos e emocionais daqueles que devem ajudar a crescer e se desenvolver – seus filhos. Porém, quando há inversão ou emaranhamento de papéis, todo o sistema entra em desequilíbrio, em desarmonia, e em situação de impedimento do desenvolvimento natural de cada componente.
Um dado novo da realidade que temos que lidar hoje é que até há bem pouco tempo atrás, pais e professores podiam prever razoavelmente em que mundo os jovens viveriam, e prepará-los para ele; atualmente, os adultos sentem, ou sabem, que o mundo em que viverão os jovens de hoje, poderá guardar pouca semelhança com o que conhecem; já se deram conta de que por mais sábios que sejam, tal sabedoria será de pouca valia para as gerações mais novas. É chegado o tempo em que crianças e jovens dominam, com surpreendente habilidade, algumas coisas que os adultos não lhes ensinaram, e muitas vezes, nem mesmo conhecem! E é um tempo sem volta, que traz em si formas de um modo de viver e conviver que estranhamos, ainda que continue pautado em valores morais e éticos antigos e inegociáveis.
Difícil a tarefa de aceitar o poder e exercer o controle sem cair nas falhas humanas, principalmente quando trilhamos caminhos desconhecidos. Considero natural uma certa angústia parental sobre o futuro de filhos. Quantas vezes nos perguntamos quais serão os efeitos do mundo virtual em nossas crianças e jovens? Lamento dizer que não há respostas, pois pesquisadores precisam de um tempo longitudinal para estudar efeitos de uma causa. No entanto, podemos hoje refletir sobre algumas questões que poderão servir para acalmar nossas almas:
Sob o olhar transgeracional, percebemos que cada geração coloca o sentido de felicidade em causas, sonhos e projetos diferentes da geração anterior. Qual será o sentido de felicidade futura para os jovens de hoje?
O contexto virtual, que tanto nos preocupa, é apenas uma parte daquilo que constitui nossos filhos e netos como seres humanos, e portanto, não os define como um todo, como uma pessoa.
Ainda que convivendo assiduamente dentro de contextos virtuais, os pais continuam sendo as figuras de maior influência sobre os jovens, e fazem nesse papel o melhor que podem.
O desenvolvimento moral de crianças nasce através do contato dela com algum tipo de autoridade que lhe apresenta limites e a ensina a respeitá-los.
Assim é que hoje, mesmo às voltas com relações em contextos virtuais, os sistemas familiares não podem prescindir de uma liderança adulta e responsável, uma forma mais maleável de hierarquia e ordem. Isso não mudou, e nas famílias, essa tarefa em geral cabe às figuras dos pais, responsáveis pelo desempenho de algumas funções:
- mediar conflitos entre as partes;
- certificar-se de que todos no sistema satisfaçam suas necessidades e sintam-se valorizados;
- distribuir os recursos, as responsabilidades ou a influência de maneira justa;
- proporcionar fronteiras e controles firmes e justos;
- encorajar o desenvolvimento de todas as partes, e ao mesmo tempo, considerar as necessidades de todo o sistema;
- representar o sistema nas interações com outros sistemas;
- coordenar os planos para o futuro do sistema (Breunlin, Schwartz, Mac kune-Karrer, 2000, p 57);
Oferecer limites que tornem a vida segura, física e emocionalmente, e ensinar, mesmo sem palavras, respeito ao outro, e valores ético-sociais alinhavados com a linha da responsabilidade amorosa, são pilares que são transmitidos por adultos, a seus filhos. Também no mundo virtual bons valores e educação, são apreciados e bem vindos.
E aos adultos que não se sentem firmes em suas certezas com a educação de seus filhos nesta nova realidade, quero relembrar, em primeiro lugar, que a melhor solução para novos desafios ainda é a boa e conhecida abertura para uma comunicação respeitosa e franca que leve a possibilidades de negociações confortáveis para todos. Chegar a esse lugar significa que pais e filhos juntos, podem reconhecer e honrar os talentos e potencialidades de cada um: ficam livres e parceiros para remover impedimentos que dificultam, ou paralisam o desenvolvimento do sistema familiar.
Em segundo, para buscar mais segurança, sugiro uma viagem ao passado, procurando relembrar os desafios que nossos pais, avós e bisavós passaram quando se viam frente a cada novo invento que o progresso trouxe – e que não foram poucos no século XX! Que recursos utilizavam para lidar com o desconhecido? Que resultados obtinham? Como conseguiam absorver e incorporar coisas novas em suas vidas? O quanto conseguiram se sair bem? Como se sentiam? O que aprendi com eles que quero, ou não, repetir com meus filhos?
O papel de educar, em qualquer tempo, sempre traz o pacote completo de inquietações, dúvidas, trabalho, alegrias, conquistas, orgulho. Aos pais de hoje, ainda cabe o mesmo trabalho que coube aos de gerações passadas. A tecnologia e hábitos novos ligados a ela, nunca mais sairão de nossas casas, de nossas vidas, de nossas relações sociais e familiares. E ela também apresentará novas formas no futuro, fazendo com que adultos sempre necessitem estudar e se atualizar. É a lei da evolução da vida.
Sem perder de vista nossa condição de pais responsáveis, procuremos aprender a língua que falam nossos amados filhos e netos; por mais desconhecido, ou chato, ou amedrontador que nos pareça, caminhemos felizes ao lado deles. O mundo terá um salto de qualidade se conseguirmos transformar desejos e comportamentos baseados competição e hierarquia, em palavras e ações cooperativas e amorosas, como cooperação e liderança. Vamos fazer a nossa parte!
Desejo que cada um de nós possa fazer o seu melhor; que todos tenhamos coragem e sabedoria para acompanhar (ainda que virtualmente) nossos rápidos e habilidosos filhos e netos; e que daqui, deste 2020 tão estranho que vivemos, depositemos muita fé no futuro melhor que os aguarda!
Referências:
Aratangy, LB. Novos desafios da convivência. 1ª. Ed – São Paulo: Riddel, 2010.
Breunlin, D, Douglas, C, Mac Kune-Karrer B. Metaconceitos: transcendendo os modelos de terapia familiar. 2ª. Ed – Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000
Hellinger, B. Constelações Familiares: o reconhecimento das ordens do amor, 2ª.ed – São Paulo: Cultrix Ltda, 2002
Regina Célia Simões De Mathis – Terapeuta de Casal e de Família, Presidente do Conselho de Educadores da Escola de Pais do Brasil. [email protected]
(*) Publicado na Revista Escola de pais do Brasil Seccional de Curitiba, ano 56, ed. 49, setembro 2020, p. 12