Desde que a Internet passou a fazer parte da vida das pessoas, muitas mudanças aconteceram no mundo. E no ambiente familiar isto não foi diferente, pois esse Universo passou a também integrar nossos lares. Gradativamente pais e filhos passaram a se utilizar cada vez mais de ferramentas para interagirem virtualmente, por vezes deixando de realizar experiências diárias de convivência afetiva para restringirem-se aos seus universos online. Em outros termos, cada um no seu quadrado.
Como que em um redemoinho, o mundo virou de cabeça para baixo nestes últimos 30 anos e valores, princípios e regras de outrora passaram a ser substituídos por esta nova onda da virtualização da informação e comunicação. Um novo estilo de vida! Uma nova ordem se estabeleceu e educar um filho na era virtual passou a ser uma arte, um grande desafio aos pais pelas exigências que este novo cenário instituiu nas relações sociofamiliares.
A virtualização das relações de grupos e familiares tem se mostrado uma rápida e eficiente forma de comunicação. No entanto muito se tem falado sobre os diferentes problemas provocados por este novo contexto. O excessivo uso das tecnologias nas famílias tem gerado um grande distanciamento entre pais e filhos, estabelecendo um grau mínimo de comunicação e interação dentro de casa – a tal sociedade do silêncio.
O distanciamento, por mais que já estivesse presente em alguns casos, intensificou-se pelo silêncio e redução da comunicação oral e trocas afetivas. Pais e filhos se encontram nos intervalos do dia-a-dia, que por vezes até são substituídos por mensagens e/ou conversas via vídeo pelo WhatsApp.
Como nosso foco neste artigo é tratar sobre as “Relações sociofamiliares no contexto virtual”, o momento real neste primeiro semestre de 2020 nos proporciona um campo fértil para analisarmos se é possível, ainda em tempo, corrigirmos alguns pontos de estrangulamento nos elos perdidos das relações entre pais e filhos em razão da internet.
A vulnerabilidade do ser humano é tamanha que o surgimento de um novo vírus, desta vez o Coronavírus, interferiu radicalmente em sua vida quanto aos seus hábitos, usos, costumes e valores, exigindo uma rápida reavaliação de sua práxis e tomada de medidas cotidianas no ambiente familiar e de trabalho, bem como em sua vida social. O “ficar em casa” forçou o enfrentamento, o “olho no olho” e literalmente a convivência com nossos mais próximos, sem a possibilidade de fuga proporcionada até então pelos compromissos de trabalho externo, escola e outros eventos sociais.
Todos, indiscriminadamente, fomos pegos de surpresa, desde os mais zelosos, disciplinados e organizados até aqueles bem despreocupados com seu estilo de vida, tiveram que promover algum tipo de mudança de comportamentos. Criando, recriando, reinventando formas de melhor interagir, trabalhar, aprender, ensinar e sobretudo conviver.
Sigmund Baumann (2004) ao fazer uma análise da sociedade moderna, “líquida”, consumista, individualizada e “sem vínculos”, retrata muito bem a fragilidade dos laços humanos e o sentimento de insegurança que disso resulta, bem como os dilemas entre estreitar esses laços enquanto se administra uma distância que seja conveniente. No entanto, até os membros da família descobrirem que as conexões de uma relação virtual não têm garantia de permanência e são passíveis de mudanças e que podem ser desfeitas a qualquer momento, por incontáveis vezes já provocou grandes estragos nas relações e trocas afetivas entre o casal e na relação pais e filhos.
Partamos de um pressuposto inicial de que a relação entre as pessoas e as tecnologias é muito complexa e as fronteiras entre o mundo real e o virtual estão cada vez mais indefinidas. Hoje, mesmo residindo sob o mesmo teto, as pessoas estão se perdendo de vista e se distanciando e criando por vezes a falsa sensação de que se aproximam mais dos que estão distantes quando, na prática, se distanciam mais dos que estão perto.
Afinal, são as pessoas que “dominam” as tecnologias ou as tecnologias que estão “dominando” as pessoas e as inebriam?
Aquele ritmo acelerado, por vezes distanciado e descompromissado dos pais em relação aos filhos, terceirizando a educação dos mesmos, com uma vida social muito mais ativa do que a familiar, passou a ser substituída da noite para o dia pela necessária e obrigatória presença física diuturna, desorganizando o que em tese estava supostamente organizado.
Outro fator que se revelou pelo isolamento social, foi a necessidade dos pais (imigrantes digitais) aprenderem a lidar com os sistemas virtuais passando a uma dependência dos filhos (nativos digitais), na maioria das vezes, na orientação e “educação” de como lidar com as mídias digitais, mais especificamente para lives, reuniões online, home-office e outras interações. Uma inversão de papéis que pode resultar numa maior aproximação paterno filial.
Podemos ainda destacar que a atual pandemia desencadeou, em muitos lares, uma desorganização da economia familiar pela crise econômica e de trabalho (desemprego), o que em muitos lares levou a uma reavaliação da administração da economia doméstica, criando oportunidades de análise de conjuntura econômica e com isso mais diálogo, mais planejamento, maior responsabilidade e comprometimento de seus membros com as despesas.
Um novo contexto se fez presente! E essa “volta para casa” pode resultar numa maior aproximação dos que mais amamos, promovendo com isso mais conversa, mais olho no olho e mais diálogo.
Todos estes fatores tem contribuído para o renascimento de um novo sujeito, despertando assim um novo olhar para a vida e para a família; um homem com mais disciplina, que tem a oportunidade de perceber a importância das trocas afetivas, do respeito e do diálogo em família. Esta nova dinâmica familiar pode resultar sim numa aproximação maior entre pais e filhos, filhos e filhos, mas pode também proporcionar situações de crises de relacionamentos se os atores não souberem, com certo grau de maturidade, como administrar as ansiedades, as trocas afetivas, o compartilhamento de ideias e emoções, acentuando assim, o distanciamento.
Consideremos a premissa de que a “Cultura” é o ponto de partida de cada agrupamento de pessoas. Cultura aqui vista como a construção de uma forma de pensar (visão de mundo) que justifique o entendimento de constituição familiar e de como melhor criar seus filhos. Cultura como educação (usos, hábitos, costumes) passada de geração em geração e adaptada aos novos tempos.
Creio que este retorno “forçado” à convivência familiar em todos os sentidos, pelo isolamento social, nos faz parar e nos olharmos no espelho (figurativamente falando) nos permitindo levantar alguns questionamentos sobre relações familiares; interação com o mundo externo; percepção do outro mais próximo: minha esposa, meu marido, meus filhos, meus pais etc; presença das mídias digitais em nossas vidas e como estamos lidando com noções sobre limites, autoridade, poder e diálogo.
É oportuno por demais este olhar de “dentro para dentro” na família e de “dentro para fora” da família – relações sociofamiliares, tentando nos perceber neste cenário frente aos novos paradigmas que estão surgindo. E assim, começarmos a catalogar novos parâmetros de relacionamentos, expressos por meio dos contatos virtuais de comunicação.
Portanto, é importante salientar mais uma vez, frente às demandas do mundo moderno, que os pais, por força das contingências sociais e de trabalho, encontravam-se muito distanciados dos filhos, deixando de exercitar a paternagem/maternagem pela terceirização de suas funções primordiais a creches e escolas em tempo integral. Este distanciamento acarreta na perda de oportunidades incríveis de trocas afetivas nos momentos mais sublimes da vida e desenvolvimento de seus filhos, principalmente na primeira infância e substancialmente no aflorar da adolescência.
O fenômeno mais importante oportunizado pelas contingências do isolamento social foi a redescoberta dos filhos por parte dos pais e vice-versa e a percepção da necessidade em exercitar o que de mais sagrado existe: o amor paternal e maternal na “arte” de cuidar, de educar e demonstrar afeto aos que mais amamos, o que vinha acontecendo apenas nos “intervalos” do dia a dia.
Para finalizar, cabe destacar ainda que o contexto virtual presente nas famílias de hoje nos dá uma noção da complexidade dos diferentes canais tecnológicos que transitam nas redes digitais cujo grau de utilização (tempo e quantidade) está diretamente relacionado com a idade e maturidade dos membros de uma família que acessam desde o Instagram, Twitter, Facebook, YouTube, sites, WhatsApp, até o Linkedin etc.
É necessário o retorno para casa! Reencontrar seu porto seguro!
Célio Alves de Oliveira – Membro do Conselho de Educadores da Escola de Pais do Brasil. Antropólogo jurídico. Professor universitário com formação em Pedagogia, Filosofia e Direito. Mestrado em Antropologia (UFRGS); Mestrado em Direito (UFSC) e Master em Direito e Mercado (UPO – SEVILHA-ESP.).
(*) Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil – Seccional de Curitiba, ano 56, edição 49, setembro 2020, p. 14