Educar um filho ou socializar uma criança, como a ciência psicológica pontua, é a tarefa mais complexa que existe. Muitos pais acham que como foram filhos sabem exatamente o que devem fazer, mas esquecem que os tempos mudaram e continuam mudando muito rapidamente. Às vezes não tem sequer a percepção de que foram educados de maneira prejudicial, pois a “transmissão intergeracional” é poderosa tanto para comportamentos adequados como para os comportamentos inadequados de nossos cuidadores no passado (Weber, 2006).
Os pais precisam, de certa forma, renunciar a sua ilusão de que vão conseguir proteger seus filhos de todas as dificuldades e crueldades desse mundo e focar fortemente no fortalecimento da capacidade de resiliência das crianças. Resiliência é um conceito que veio da área de conhecimento da física e significa a capacidade de uma pessoa em lidar com situações adversas, obstáculos e problemas, e reagir de maneira a superá-las ou mesmo procurar ajuda juntos a pessoas de confiança. Desde o nascimento nós vivenciados uma enormidade de estressores e adversidades e, até o final da vida, estamos buscando estratégias e maneiras de conviver, transformar e enfrentar essas experiências penosa. A perspectiva ecológica leva em conta os diferentes fatores que influenciam a capacidade de resiliência de uma pessoa durante o tempo de vida: a família, os amigos, a escola ou os ambientes de trabalho, e os sistemas sociais mais amplos podem ser vistos como contextos associados que fomentam a competência social (Bronfenbrenner, 1996). Para construir uma boa resiliência diante da vida é preciso construir na infância uma “base segura”, ou seja, a criança deve sentir-se absolutamente amada e protegida, uma boa autoestima que lhe traga senso de valorização e competência e senso de autoeficácia, um jeito otimista de ver o mundo, entender suas próprias forças e limitações, mas também controle e maestria diante da vida (Gilligan, 1977). Pela própria natureza, as crianças são especialmente vulneráveis a todos os tipos de abusos, por conta de sua dependência, falta de poder e pelo fato de não saberem sobre os perigos e crueldades do mundo.
Uma das perversidades da existência é o abuso sexual de crianças e adolescentes. Estima-se que no mundo todo, anualmente, cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes sofram abuso sexual. O abuso sexual inclui atividades sexuais onde não há contato físico (voyeurismo, assédio, exibicionismo); onde há contato físico sem penetração (toques, carícias, sexo oral); ou ainda quando existe contato com penetração (digital, genital ou anal). Alguns autores caracterizam o abuso sexual como uma progressão ascendente, no qual o agressor, aos poucos, por meio de carícias sutis vai progredindo nas agressões passando pela manipulação genital, podendo chegar ao intercurso sexual oral ou genital. Há evidências de violência nessas práticas eróticas e sexuais contra a criança ou ao adolescente, seja físico – uso da força ou psicológica – pela coerção, indução, sedução e indução de sua vontade (Coutinho & Morais, 2018).
Pesquisas revelam que em aproximadamente 85% dos casos a criança conhece o autor, como pai, padrasto, mãe, parentes, vizinhos, amigos da família, cuidadores e pode ocorrer em todos os segmentos socioeconômicos; dentre os familiares o padrasto e o pai são os principais abusadores. Os dados também revelam que apenas 10% dos casos são notificados às autoridades e grande parte são recorrentes, ou seja, não acontecem apenas uma vez. A maioria absoluta dos abusos acontece com meninas: 40% contra crianças e adolescentes de 10 a 14 anos; 21% dos casos vitimizando crianças de 1 a 5 anos.
Assim, é preciso uma prevenção ao abuso de crianças e adolescentes em várias fontes: preparar para que os filhos vivam a vida de cada dia; ensinar a identificar e reagir a situações potencialmente perigosas e mostrar como procurar e pedir ajuda. Para que isso seja eficaz os filhos precisam sentir-se à vontade com os pais e serem respeitados em suas colocações.
O que pode ser feito com os filhos:
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Educação sexual deve começar na primeira infância na família, de forma informal, natural. A maioria absoluta dos abusos contra crianças e adolescentes vem de alguém muito próximo da criança, dentro e fora da família.
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Clarifique a respeito da individualidade, afirmando que cada pessoa é única e dentro da incrível diversidade do ser humano é importante respeitar o outro.
Diga que cada pessoa tem o direito de expressar seus sentimentos, de dizer “não” e de prestar atenção nas proposições de outros que não a respeitam. Ninguém tem o direito de provocar dor ou humilhar o outro. Geralmente os agressores sexuais escolhem crianças e adolescentes menos confiantes em si mesmos e psicologicamente frágeis, então veja que práticas educativas que deixem a criança submissa totalmente não são ideais. -
Converse sempre com os filhos, mesmo sobre questões constrangedoras como órgãos genitais e sexualidade. Os pais devem ser o porto-seguro e devem praticar para falar calmamente com a criança para que ela se sinta protegida e amada nesse tipo de conversa e nunca culpada ou com medo por revelar algo. Ensine sobre o corpo muito cedo, utilizando as palavras corretas inclusive para os órgãos genitais e não apenas “a parte de baixo”.
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Não force a criança a beijar, abraçar ou se sentar no colo qualquer pessoa que ela não queira; ensine a cumprimentar educadamente, mas tocar não é obrigatório.
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Explique que certas partes do corpo são privadas, íntimas; mãe e pai podem ver essas partes e ver os filhos sem roupa em situações muito específicas como banho, troca de roupa, verificar alguma doença, mas outras pessoas não, a não ser um médico com o pai e/ou mãe junto. Outros não tem esse direito e ela também não pode fazer isso com outros.
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Esclareça que tocar nessas partes íntimas pode proporcionar cócegas ou ser gostoso; o abusador pode pedir “segredo”, pode dizer que é um “jogo”, pode oferecer presentes e ainda pode culpar a criança e dizer que se ela contar aos pais eles vão brigar e ficar bravos. A criança pode ficar perturbada, pois não quer magoar a família, por isso tais conversas de prevenção devem ser claras. O estilo denominado “pais participativos ou autoritativos” é ideal, pois a criança não terá medo de contar, não deve existir segredos em família (Weber, 2018).
Ensine que a criança deve contar imediatamente a seu pai/sua mãe/seu irmão, um adulto de confiança, se algo assim acontecer com ela. -
Instrua que assim como outras pessoas não podem tocar suas partes íntimas, nenhuma pessoa pode pedir para a criança tocar nela, falar sobre as partes privadas, exibir-se ou tirar fotos.
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Ensine a criança a dizer “não” de maneira firme se alguém agir inadequadamente e chamar um adulto de confiança. Abuso sexual ocorre quando alguém exerce poder sobre a criança, pode ocorrer entre adulto e criança, entre adolescente e criança ou entre duas crianças.
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Oriente e acompanhe muito bem filhos pequenos que usam internet, redes sociais e trocas de mensagens e bloqueie sites inadequados.
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Cuide com mensagens absolutistas passadas às crianças, tais como “os adultos sempre têm razão” ou “vou chamar a polícia para te pegar senão arrumar teu quarto”.
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Como identificar um trauma? Quando existe um processo de trauma (às vezes a criança pode não ver aquilo como trauma) ou algo que não entende, uma criança pode modificar seu comportamento usual. Se era tranquila pode ter atitudes agressivas; isolamento e baixa autoestima; o seu estado de humor pode oscilar fortemente; desinteresse de coisas que antes gostava; atitudes e conhecimentos inadequados para a idade – como usar o corpo como atração com outras pessoas e falar muitas coisas não apropriadas para a idade; pode ter dores de estômago, de cabeça, infecções, raiva desmedida, medo de situações com pessoas, agitação, e até transtorno de ansiedade e depressão.
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Se algo for percebido a família deve procurar ajuda profissional; um psicólogo pode identificar a situação. Se for flagrante, denunciar. As escolas tem um papel importante nessa questão também e devem ser preparadas.
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É importante sempre dizer que a maior prevenção é os pais construírem um clima afetivo e de envolvimento familiar onde a criança sinta-se amada e tenha voz para colocar abertamente todas as suas preocupações. Desta forma, mesmo em uma situação terrível em que um dos pais seja o abusador ela poderá confiar e revelar ao outro.
Referências:
Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed.
Coutinho, M.M.L. & Morais, N.A. (2018). O processo de revelação do abuso sexual intrafamiliar na percepção do grupo familiar. Estudos & Pesquisas em Psicologia, 18(1).
Gilligan R. (1997). Beyond permanence? The importance of resilience in child placement practice and planning. Adopt Fostering, 21(1),12-20.
Weber, L.N.D. (2018). Eduque com Carinho: equilíbrio entre amor e limites (6ª. edição). Curitiba: Juruá.Roiste, A. (2018). Nurturing resilience: the ‘ordinary magic’ of everyday life. Journal of Human Growth and Development, 28(3), 278-282.
Weber, L.N.D., Selig, G.A., Bernardi, M.G. & Salvador, A.P. (2006). Continuidade dos estilos parentais através das gerações – transmissão intergeracional de estilos parentais. Paidéia, 16(35), 407-414.
Lidia Natalia Dobrianskyj Weber – Psicóloga (CRP 08/0774). Doutora em Psicologia com pós-doutorado em Desenvolvimento Familiar; Professora sênior da UFPR. [email protected]
(*) Publicado na Revista Escola de Pais do Brasil Seccional de Curitiba, ano 56, ed. 49, setembro 2020, p. 44.