São vários e muito interessantes os aspectos que podemos destacar ao analisarmos os dados da pesquisa realizada pela Escola de Pais do Brasil em parceria com a ESAG Jr. no período de janeiro a abril de 2019, no que se refere à educação sexual (ES) das crianças e dos jovens.
A começar pelo fato de que, apesar dos muitos avanços que vimos acontecer em todas as áreas da vida humana nos últimos séculos, as áreas da sexualidade e da ES continuam a ser a segunda maior dificuldade apontada pelos pais, mães e cuidadores/as na educação dos seus filhos e filhas, ficando atrás somente da dificuldade em controlar o uso dos aparelhos eletrônicos. Este dado vem reforçar os resultados de outros estudos e pesquisas realizadas neste âmbito e que apontam como algumas das possíveis razões para a manutenção desta problemática: as questões culturais, políticas e religiosas de um país com uma dimensão continental como é o Brasil que acabam por interferir no esclarecimento dos muitos aspectos que envolvem a sexualidade; a falta de um trabalho contínuo e sistemático de ES na escola, tendo como base uma legislação que regulamente efetivamente um programa de ES dando um suporte legal a este trabalho, em vez de oferecer apenas parâmetros que orientam ou sugerem o que trabalhar na escola; a falta de formação inicial e contínua de professores/as nesta área; a falta de conhecimento e a resistência da maioria das famílias que deveriam, em parceria com a escola, assumir e apoiar este trabalho e, a manutenção dos mitos, preconceitos e tabus que envolvem o sexo e a sexualidade, pois apesar das inúmeras fontes de informações hoje facilmente acessíveis (porém, nem sempre confiáveis), carecemos de uma reflexão crítica acerca das mesmas.
Outros dados desta pesquisa vêm reforçar o que referimos anteriormente e apontar para algumas das razões pelas quais muitas das dificuldades no âmbito do trabalho de ES das crianças e dos jovens se mantêm. Quais sejam: a influência da mídia (1º motivo), a falta de tempo (2º motivo), a influência dos amigos e parentes (3º motivo) e a falta de conhecimento sobre o assunto (4ª motivo).
Enquanto a família se mantém num hiato, seja pelo “desconhecimento dos assuntos” que envolvem a ES dos seus filhos e filhas ou seja pela “falta de tempo”, “a mídia”, os “amigos ou parentes” e outros grupos sociais dos quais eles fazem parte, ocupam o espaço deixado por ela, influenciando as crianças e os jovens direta ou indiretamente, repassando e incutindo valores morais, éticos e religiosos que nem sempre são compatíveis com os próprios valores familiares. A família é a primeira educadora sexual. É neste espaço de afetividade e respeito que as crianças e jovens devem encontrar a abertura e a confiança necessária para esclarecerem suas dúvidas, dialogarem, questionarem e serem orientadas segundo os valores que a família valoriza e prioriza. É imprescindível que a família dialogue e que tenha muita clareza e consenso sobre quais são os valores éticos, morais e religiosos que deseja transmitir aos seus filhos e filhas e, com muita tranquilidade, segurança e afetividade, deve transmiti-los por meio do diálogo franco e amoroso. Importante destacar que, muitas vezes, esses valores vão de encontro aos valores de outras famílias de amigos ou parentes, ou vão de encontro aos valores repassados pelas mídias através de diferentes recursos (telenovelas, músicas, desenhos infantis, propagandas, redes sociais entre outras) ou ainda, vão de encontro aos valores transmitidos pelos diferentes grupos sociais (escola, amigos/as, igrejas/templos). Todavia isso não deve desmotivar e tampouco intimidar os pais e mães a orientarem seus filhos e filhas segundo os seus valores. Pelo contrário, este deve ser o principal motivo para fazê-lo! Se, por exemplo, o aborto não faz parte dos seus valores familiares, isso deve ser deixado muito claro para os seus filhos e filhas, não importando o que os outros pensam ou digam! Entretanto, tão importante quanto transmitir os seus valores, deve-se ensiná-los a respeitarem quem pensa de forma diferente ou quem tem valores diferentes. Faz parte de um trabalho de ES dentro da família, mostrar que há diferentes formas de ser e de estar no mundo, que há diferentes maneiras de ver as coisas; que há diferentes crenças e valores, mas que o respeito às diferenças deve sempre prevalecer.
Não poderíamos ainda deixar de refletir sobre o segundo dado da pesquisa que indica quais são as maiores dificuldades encontradas na educação dos filhos e filhas, por faixa etária. Nele observamos que: do zero aos 6 anos não aparece nenhuma referência a dificuldades na área da sexualidade e da educação sexual. Esta dificuldade começa a aparecer em segundo lugar, perdendo novamente apenas para a dificuldade no controle do uso dos aparelhos eletrônicos, somente entre os 7 e os 10 anos. Entre os 11 e os 14 anos ela passa a ser a quinta maior dificuldade e entre os 15 e os 25 anos, volta a se acentuar, passando para o segundo (quando se refere a relacionamentos, pois este assunto está diretamente relacionado à sexualidade) e o terceiro lugar (sexualidade e ES).
Poderíamos discorrer e refletir longa e aprofundamente sobre cada um dos resultados encontrados em cada uma das faixas etárias. Todavia, optamos por focar especial atenção à faixa do zero aos 6 anos, por entendermos estar aqui a base estrutural do desenvolvimento psicossexual do ser humano, bem como a base de todo o trabalho de ES que, sendo bem realizado, poderá garantir uma vida afetiva e sexual satisfatória, saudável e responsável em todas as demais faixas etária, incluindo a vida adulta. O que depreendemos a partir deste dado especificamente é que continuamos a negligenciar a sexualidade infantil e a enxergar a criança como um ser assexuado. Mais de um século se passou desde que os estudos psicanalíticos de Freud (Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – 1905/1996) delinearam o desenvolvimento psicossexual da criança, caracterizando os importantes aspectos da sexualidade infantil e, grande parte dos adultos se mantém relutante em compreender que o desenvolvimento da sexualidade começa na infância e, consequentemente o processo de ES também começa na infância. Seja por relutância ou seja por total desconhecimento, o que acontece é justamente o que nos mostrou a pesquisa: não são encontradas dificuldades relativas à ES na faixa etária do zero aos 6 anos simplesmente não porque elas não existam, mas porque elas não são vistas, não são observadas, não são reconhecidas. Entre as muitas e possíveis razões da dificuldade de compreensão e aceitação da criança como um ser sexuado estão: a falta de clareza sobre os conceitos de sexo e sexualidade, reduzindo tudo apenas “ao sexo”; o total (ou quase total) desconhecimento das características e das manifestações da sexualidades infantil; a idealização da criança como um ser puro e angelical se contrapondo à ideia do sexo como coisa suja e impura sendo portanto, inadequado relacioná-lo à criança (aqui mais uma vez reforçando, pela confusão entre os conceitos de sexo e sexualidade); o olhar contaminado e deturpado resultante da ES repressora (que muitos de nós adultos recebemos) sobre as manifestações da sexualidade infantil, confundindo-a com a sexualidade adulta e, a ilusão de que conversar e orientar sobre temas que envolvem o sexo e a sexualidade, ao contrário de servir para informar, prevenir e proteger, serve para despertar precocemente para o assunto ou sendo ainda mais específica, serve para antecipar a vivência sexual. Se falar de ES na adolescência já é complexo, muito mais complexo tem sido falar em ES na infância.
Frente ao que expomos até aqui com base na breve análise de alguns dos dados da pesquisa da Escola de Pais em parceria com a ESAG Jr, podemos nos perguntar: mas afinal o que fazer para ultrapassar as dificuldades na ES dos filhos e filhas relatadas na pesquisa? Entendo que olhar para os motivos das dificuldades mencionadas pelos/as próprios entrevistados e buscar soluções para elas, pode ser um bom começo. Se já sabemos de antemão quais são os motivos que nos levam a termos algumas dificuldades, já possuímos uma parte do problema detectado. Precisamos buscar encontrar as soluções possíveis para ultrapassar as dificuldades já reconhecidas.
Relativamente à influência da mídia e dos amigos/as e parentes mencionada pelos/as entrevistados/as, esta poderá ser contraposta com a presença mais ativa e constante da família ou seja, priorizando o tempo e o diálogo com os filhos e filhas ou priorizando o envolvimento dos mesmos em atividades que os/as afaste da frente da TV, do computador ou do celular. De fato, muitos estudos têm indicado que o número de horas que as crianças e os/as jovens passam em frente à TV, ao computador ou ao celular ultrapassa em muito o nível do aceitável e do recomendável, causando inclusive riscos de dependência psíquica, além de outras consequências graves.
Já a falta de conhecimento sobre o tema da ES pode-se resolver ou pelo menos minimizar buscando mais informações ou orientação, preferencialmente de pessoas que tenham um conhecimento mais especializado sobre o problema ou o assunto em questão. Vimos nos resultados da pesquisa que muitos pais e mães (62%) procuram a ajuda de familiares ou de amigos. Isto não é de todo mal, pois imaginamos que as pessoas procuradas tenham algum conhecimento sobre o assunto ou vivenciado algo parecido. Entretanto, a não ser que estas pessoas tenham alguma formação na área ou tenham buscado informações confiáveis sobre o fato em questão, o que acaba por acontecer é apenas uma troca de informações e de vivências baseadas no senso comum que, em muitos casos, pouco ou nada contribui para efetivamente ajudar a ultrapassar as dificuldades existentes. Neste sentindo, foi interessante observar que um número igualmente significativo (53%) de entrevistados/as relatou pedir ajuda de pessoas especializadas na área (pedagogos, psicólogos etc). Foi mencionado por 37% a busca de informações por meio dos mecanismos de busca Internet e de fato, este é um excelente recurso por meio do qual podemos ter acesso a um extenso número de informações. No entanto, da mesma forma que isso facilita o acesso, dificulta uma busca mais pontual, de qualidade e confiabilidade. Assim sendo, orientamos para que seja observada a credibilidade da informação (a existência de instituição e/ou pessoa responsável pelo conteúdo disponibilizado, além de credenciais e formas de contato, caso necessite esclarecer alguma dúvida); a atualização do conteúdo (observe quando a página foi atualizada pela última vez, para ter a certeza que o conteúdo é atual); a qualidade intrínseca da informação (a coerência com as normas cultas, se existe foco e consistência no conteúdo, além de verificar se há referências às fontes pesquisadas) e, principalmente, que seja feita uma avaliação crítica no sentido de verificar de que maneira as informações ou orientações acessadas poderão contribuir para reforçar ou para reavaliar os seus valores éticos, morais e religiosos referentes ao assunto. Como professora que sou, confesso que fiquei constrangida, mas não surpreendida, ao confirmar por meio desta pesquisa aquilo que já tinha conhecimento por meio de outras pesquisas: que apenas 36% das pessoas entrevistadas procuram a escola para pedir orientação, quando esta deveria ser um dos primeiros recursos da família, tendo em conta que é o lugar onde as crianças e os jovens passam um grande tempo de suas vidas. Conforme já mencionamos anteriormente, de fato a falta de parceria e de cumplicidade entre a família e a escola traz dificuldades para os dois lados e os maiores prejudicados são as próprias crianças e os jovens. 30% relatou buscar ajuda em livros e revistas e consideramos uma excelente iniciativa, destacando também o cuidado e atenção na escolha das revistas, pois nem todas trazem informações totalmente confiáveis.
Um último dado interessante a animador refere-se ao número de entrevistados/as que disseram ter interesse em aprender mais sobre os seus pontos de dificuldade – 89%! Não há outro meio de vencermos nossas dificuldades e limitações e de crescermos e evoluirmos sem ser por meio da busca constante de novos aprendizados. Isso dá trabalho, exige dedicação e tempo, mas não há outro modo de crescermos e evoluirmos como seres humanos e como pais e mães ou como educadores/as. Este é o único caminho possível! Por isso reforçamos a necessidade de a família ser mais participativa nas atividades escolares dos seus filhos e filhas; estar mais presente e ativa dentro da escola; procurar atualizar seus conhecimentos participando de cursos e palestras ou lendo livros, artigos, revistas relacionadas à educação em geral. Tão ou mais importante do que o investimento na sua formação e atualização profissional é o investimento na sua formação e atualização como pai ou como mãe, pois é a vida de um outro ser humano que está em suas mãos.
Profa. Dra. Dhilma Luci de Freitas – Graduação em Pedagogia, Especialização em Educação Sexual e Mestrado em Educação e Cultura. Membro dos Grupos de pesquisa LabeEduSex e Educasex (UDESC- BR) e Geisext ( IEUL -PT)
(*) Publicado na Revista Escola de Pais Seccional da Grande Florianópolis – dezembro de 2019, pg. 38